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Centro ABCReal, um centro que tenta fazer a diferença na diferença

Uma das salas do Centro ABCReal | Foto D.R.

O Centro ABCReal foi fundado a 29 de setembro de 2008, em Almada, e tudo começou devido à situação do Luís. O jovem foi diagnosticado com Síndrome de Asperger e Défice Cognitivo Profundo, sendo que depois foi apelidado de “caso bizarro” quando teve alta, aos 5 anos, do Hospital Santa Maria. Depois dos pais, Albertina Marçal e Carlos França, investigarem, chegaram ao método ABA (Análise Comportamental Aplicada), uma técnica aplicada em alguns países, nomeadamente os EUA, desde os anos 50 do século XX.

Nesta entrevista, ficamos a conhecer melhor o método ABA, a equipa do Centro ABCReal e o seu trabalho junto da comunidade. Para além de Carlos França, presidente do centro ABCReal e de Albertina Marçal coordenadora geral do Centro ABCReal Portugal, temos a participação de Cátia Castro, gestora técnica do centro ABCReal Portugal e Francisco Queirós, assistente da direção do Centro ABCReal Portugal e orientador responsável pelos estágios académicos.


Diário da TV (DTV) - Contem-nos um pouco da vossa história e percurso a nível profissional.

Cátia Castro (C.C.) - Sou pós-graduada em Análise Comportamental Aplicada (ABA) na Loovas Foundation, em Barcelona. Iniciei a minha carreira nesta área em Paris na associação Vaincr L’Autisme e, em 2016, quando regressei a Portugal, iniciei o meu percurso no Centro ABCReal Portugal, começando por atuar como terapeuta, mais tarde como supervisora e atualmente como coordenadora técnica.

Francisco Queirós (F.Q.) - A minha estadia no centro não é tão longa quanto a da Dra. Cátia. Concluí o meu Mestrado em Psicologia Clínica no ISPA, em 2021, onde estagiei durante um ano na Equipa Comunitária da Amadora do Hospital Professor Fernando da Fonseca com pacientes psiquiátricos. Acabei por encontrar o Centro ABCReal Portugal há quase um ano e meio enquanto procurava propostas de estágios profissionais para me inscrever na Ordem dos Psicólogos Portugueses (OPP). Uma vez que é uma população (crianças) e terapia (comportamental) totalmente diferentes do que estava habituado, decidi experimentar. Sou apaixonado pela área de investigação, nomeadamente, o sentido de vida e promoção da saúde e sinto que esses meus interesses são de alguma forma consolidados pelos objetivos e futuros projetos do centro.


DTV- Quando foi fundado o Centro ABCReal e a que necessidades vem dar resposta?

Albertina Marçal (A.M.) - O Centro ABCReal foi fundado a 29 de setembro de 2008 e vem dar resposta à situação do nosso filho (meu e do Dr. Carlos): o Luís. O Luís foi, primeiramente, diagnosticado com Síndrome de Asperger e Défice Cognitivo Profundo, sendo que depois foi apelidado de “caso bizarro” quando teve alta, aos 5 anos, do Hospital Santa Maria. Todo o processo terapêutico durou desde os seus dois até aos 14 anos. Quando o nosso filho tinha nove anos, decidimos procurar respostas noutro país, visto que Portugal não tinha terapia nem meios para garantir o melhor desenvolvimento do Luís. Naquela altura, o leque alimentar dele era muito restrito e não conseguia dormir na sua cama, como devem imaginar são coisas que afetam a dinâmica de uma família e revelam o evidente atraso no desenvolvimento. Em Portugal, ouvíamos somente respostas como: “Compre uma cama maior!”. É verdade que na altura se falava “muito mal” da ABA em Portugal, mas decidimos investigar por nós próprios, visto que a ABA já é aplicada em alguns países, nomeadamente os EUA, desde os anos 50 do século XX, e totalmente suportada pelas instituições governamentais. Foi então que descobrimos a ABC Inc. (atualmente a nossa sede mãe) e entrámos em contacto com eles. A equipa veio a Portugal e resolveram o problema numa sessão de 1h30. Decidimos, portanto, ir ao Estados Unidos aprender mais sobre esta terapia. Realizámos uma formação intensiva de uma semana de oito horas diárias, realizaram uma avaliação de três dias ao Luís e estabeleceram os objetivos da sua intervenção. Se me perguntarem qual é o objetivo do centro, eu penso que se torna nítido depois desta nossa história. Gostávamos que todos os meninos que tivessem o mesmo problema do Luís não tivessem de passar pelo que passámos. Se bem que ainda hoje eu sei que muitas famílias saem do hospital com o mesmo sentimento com que eu saí. O Centro ABC Real procura dar alguma resposta nesse sentido.

Carlos França (C.F.) - Ficámos estupefactos com os resultados da intervenção. Decidimos abordar o presidente da ABC Inc. da altura (o Prof. Dr. Joseph Morrow) para que nos apoiasse a implementar este tipo de intervenção em Portugal. Sabíamos que, assim como o Luís necessitava daquele tipo de intervenção, muitas outras crianças também precisavam. Regressámos a Portugal no dia 25 de dezembro de 2007 e a 18 de janeiro de 2008 já tínhamos estabelecido um protocolo para ter uma sala onde pudéssemos intervir e o apoio da instituição americana para dar formação aos nossos técnicos e pais. Na altura, realizou-se, inclusive, duas formações sobre ABA na Faculdade Lusófona com a equipa americana e foram um enorme sucesso. Fizemos uma cerimónia de pré-abertura do centro na Fundação Calouste Gulbenkian com a presença do Dr. Prof. Dr. Joseph Morrow, da Ordem dos Médicos, entre outras instituições e profissionais importantes nestas áreas da saúde mental. O centro vem dar resposta a uma lacuna grave que ainda existe no nosso país. A ABA é uma terapia mais eficaz e com melhores resultados, que ainda não existia aqui até então. Nem tem uma entidade que a regule tão pouco. Procuramos expandir esta terapia e a legalizar-se em Portugal. Não sei se sabe, mas o Centro ABCReal Portugal é a única instituição ABA em Portugal que é uma associação sem fins lucrativos. O nosso objetivo é ajudar os outros e não fazer dinheiro. Inclusive, como costumo dizer, “Se me saísse o Euromilhões, eu faria desta terapia totalmente gratuita!”.


DTV- Quantos profissionais fazem parte do Centro e quais as suas áreas de especialização?

F.Q. -
Segundo os nossos registos mais atuais, o Centro ABCReal é composto 26 profissionais técnicos, quatro elementos em formação e uma estagiária académica próxima de concluir o seu estágio. Como podem imaginar, não sendo a ABA reconhecida em Portugal e não havendo uma formação própria nesse sentido, é necessário que seja o centro a formar intensivamente os seus profissionais. Muitos de nós viemos de Psicologia, como resultado da procura de um estágio profissional para a OPP, mas temos (ou já tivemos) profissionais da área de Terapia da Fala, Terapia Ocupacional, Psicomotricidade, Educação Especial, Educação Social, entre muitas outras.

O centro foi fundado a 29 de setembro de 2008 | Foto D.R.


DTV - O Centro tem apenas crianças? Quantos são os utentes e quais as suas idades em média?

C.C. - O centro apoia indivíduos desde os 18 meses até à idade adulta, ou seja, crianças, adolescentes e adultos. No entanto, a faixa etária da nossa população atual varia entre os dois e os 25 anos. Neste momento, acompanhamos cerca de 50 crianças e as suas respetivas famílias, uma vez que também realizamos consultas de anamnese, avaliações preliminares e formação parental. Esperamos um dia conseguir alcançar ainda mais famílias e crianças que necessitam do nosso apoio!


DTV - O que é a intervenção/terapia ABA? Porque é utilizada no vosso centro e quais são os resultados pretendidos?

C.C. - A Análise Comportamental Aplicada (ABA) é uma ciência, com mais de 50 anos de investigação que fundamenta e comprova a eficácia das suas práticas no que diz respeito ao desenvolvimento de autonomia em indivíduos com Autismo (PEA), possibilitando assim a sua verdadeira inclusão. Apesar de a terapia baseada em ABA ter adquirido uma maior expressão no que diz respeito ao aumento da qualidade de vida de pessoas com Autismo, ela pode ser determinante para uma série de outros casos. Indivíduos com Perturbações de Desenvolvimento, Dificuldades de Aprendizagem ou Problemas Comportamentais podem beneficiar muito desta abordagem terapêutica, que combina um trabalho equilibrado entre o aumento de competências em défice e a diminuição de barreiras à aprendizagem.

A.M. - A questão preocupante é que não existe um estado atual da ABA em Portugal. Não existe qualquer reconhecimento e, como tal, também não existe a formação académica para esta intervenção. Nem a Federação Portuguesa de Autismo reconhece a ABA como principal tratamento porque afirmam ser um entre muitos. Curioso que esta situação não seja igual para todas as terapias. Lamentavelmente, e a exemplo de outras terapias nos diversos ramos da saúde, haverá sempre contestação e manifestações daqueles que não estão de em desabono da ABA por parte de autistas que receberam esta terapia na infância. Estes indivíduos, nos entanto, esquecem-se que, provavelmente, se não fosse o acesso a esta terapia, hoje poderiam não ter sequer competência para ler, escrever, falar ou até mesmo pensar de modo independente e autónomo. Provavelmente, esquecem-se do muito trabalho e esforço desenvolvido pelos técnicos e até por eles próprios para apresentem ao seu nível de desenvolvimento atual. Os próprios americanos reforçam isto em muitas palestras que dão.


DTV - Em termos de sucesso e melhoria para os utentes, a intervenção/terapia ABA é realmente eficaz?

C.C. - Claro que sim. Por trabalhar o desenvolvimento global do indivíduo, ter um caráter intensivo e uma grande variedade de ferramentas e procedimentos, é a abordagem de intervenção com maiores percentagens de eficácia no Autismo, mas também em outras perturbações. Existem, inclusive, uma série de estudos que o comprovam. Caso os leitores estejam interessados em “tirar a teima”, podem ler, por exemplo, um estudo recente (2020) de Qian Yu, Enyao Li, Liguo Li e Weiyi Liang que faz uma meta-análise de vários outros artigos sobre ABA.


DTV - Que programas de intervenção têm no centro?

C.C. - Quanto aos nossos programas de intervenção, o nosso método de intervenção é exclusivamente ABA. O que difere depois é, essencialmente, a idade do paciente, a duração e o local de intervenção. As nossas intervenções variam entre duas a 40 horas de terapia semanalmente e intervimos em contexto estruturado (Salas do Centro), ao domicílio (In-Home) e em contexto de sala de aula e recreio (Shadowing), onde o terapeuta incentiva o desenvolvimento e a adaptação do aluno em contexto escolar. Obviamente que os objetivos da terapia também são determinantes para o tipo de intervenção que iremos realizar, mas essencialmente são estes os critérios que definem as diferentes intervenções.


DTV - Quais as parcerias e serviços que dispõem?

A.M. - As nossas parcerias vão mudando ao longo dos anos, mas são, essencialmente, as instituições que nos acolhem. Atualmente, estabelecemos parceria com o Externato de Educação Popular e a Associação de Iniciativas Populares para a Infância do Conselho de Almada (A.I.P.I.C.A). Contudo, já tivemos com inúmeras instituições: com o Tutor T, com os Salesianos de Lisboa, com a Santa Casa de Misericórdia de Almada, com o Centro Paroquial Nossa Senhora da Conceição, com o Diferenças, com o Colégio Campo de Flores.

F.Q. - Atualmente, também estabelecemos com o ISPA-IU uma parceria para estágios académicos. No fundo, os alunos do último ano de Mestrado de Psicologia Clínica realizam, durante um ano letivo, um estágio na nossa instituição. Posteriormente, gostaríamos de alastrar estágios desta natureza a novas áreas e, consequentemente, novas instituições de ensino superior.


DTV - Existe no ABCReal investigação e desenvolvimento de novas intervenções que possam ajudar as crianças?

A.M. - Desde a sua criação que o Centro ABCReal Portugal pretendia a investigação enquanto uma das suas funções. No passado, desenvolvemos alguns projetos, mas por uma questão financeira foram abandonados. Vou dar um exemplo: pretendíamos, na altura, estudar o movimento ocular em jovens com PEA, mas infelizmente era financeiramente impossível sustentar esta investigação. Mas, pelo menos, já publicámos um artigo em parceira com a ABC Inc. sobre três casos de sucesso no nosso centro que foi publicado na Ordem dos Enfermeiros. Nessa altura, tentámos, ainda, estabelecer contactos que nos permitissem implementar cadeiras sobre ABA no ensino superior, nomeadamente na Escola Superior de Alcoitão de onde surgiram alguns técnicos, que acabaram por não ser implementados por questões financeiras. Infelizmente, muitas coisas boas deixam de ser feitas por questões financeiras…

F.Q. - Atualmente, o centro ABCReal Portugal pretende retomar gradualmente esta vertente académica e retomar aos projetos de investigação científica, através da criação de um departamento centrado nessa área. Neste momento, procuramos aproximar-nos cada vez mais do Ensino Superior através da realização de estágios académicos (já em vigor com o ISPA) e palestras para estas comunidades. Estes estágios permitem aos alunos universitários conhecer e vivenciar a terapia ABA de uma forma mais ampla e completa do que a apresentada nas instituições de ensino, que é relativamente nula. De certa forma, esta ligação permitirá que se crie algum interesse nesta área dentro desse meio e, consequentemente, pôr fim ao preconceito que existe sobre a ABA. O nosso objetivo com esta iniciativa é promover a ABA enquanto ciência junto das comunidades científicas e, consequentemente, promover a inovação e investigação dentro desta área e do autismo. Como sabemos, ainda são áreas com muito por descobrir e conhecer, especialmente em Portugal onde o investimento e o interesse é relativamente pouco.

C.F. - Temos realmente bastante interesse nessa área como demonstra a nossa história e objetivos futuros. A criação de um departamento científico que vise a produção de conhecimento dentro da área do Autismo e da ABA é fundamental para a sua creditação a nível nacional. Acredito que possamos fazer a diferença nesta área. Em particular, acho importante retomar a publicação de estudos de caso (totalmente anónimos), pois reflete nitidamente sobre as melhorias desta terapia nas nossas crianças. Para além disso, a própria reflexão feita nesses estudos permite muitas vezes formular novas técnicas e, consequentemente, melhorias dentro desta terapia. Temos bastantes esperanças neste projeto e esperamos que toda a equipa e a comunidade científica o abrace com a mesma intensidade que nós o fazemos.

O centro apoia indivíduos desde os 18 meses até à idade adulta | D.R.

DTV - São uma instituição sem fins lucrativos. O Centro ABCReal “vive” de doações? Como pode o público ajudar?

A.M. - Somos um centro que tem vivido e crescido, em parte, graças às doações e apoios de muitas famílias e instituições aos quais estamos especialmente gratos. Até alguns amigos nossos que acreditam neste sonho. Já nos doaram brinquedos, mobiliário e cederam salas (através de protocolos) para podermos intervir com as crianças. Já tivemos, inclusive, alguns apoios financeiros por parte do antigo Banco Espírito Santo (BES). Qualquer pessoa interessada poderá sempre entrar em contacto connosco e doar aquilo que lhe for possível (mobília, brinquedo, tecnologia, entre outros). Somos gratos a todos aqueles que nos ajudam a sonhar.

C. F. - Existem formas muito simples e sem qualquer prejuízo para as pessoas nos ajudarem. Uma delas é através do IRS, que é uma situação que sem qualquer custo nem penalização, que torna possível doar 0.5% do valor tributável em IRS para uma instituição sem fins lucrativos, ou seja, neste caso nós (se a pessoa nos escolher). Outra via é através da Lei do Mecenato, cada pessoa ou empresa poderá doar a uma instituição um montante que será abatido nos rendimentos ou resultados da empresa (no IRS). No caso das empresas, podem recuperar até 140% do valor doado. Apesar de ser pouco conhecido, é uma medida que pode ajudar bastante várias associações. Ainda é possível “apadrinhar uma criança”, por assim dizer. Imagine que uma criança não tem dinheiro suficiente para suportar a intervenção, é possível que alguém interessado em ajudar suporte parte dos custos da intervenção e dos materiais necessários desta criança. Maneiras de nos ajudar é o que não faltam.


DTV - Quais são os objetivos do Centro ABCREAL a longo prazo?

A.M. - Acho que sobretudo é importante continuar a manter a qualidade dos nossos serviços e melhorar naquilo que nos for possível. Só assim iremos alcançar mais famílias e provar que o Estado português, e outras instituições na área do Autismo, reconheçam a ABA enquanto intervenção terapêutica eficaz.

C.C. - Penso que seja bastante importante continuar a disseminar a ABA e os seus efeitos benéficos por todo o país, fazendo-a a chegar ao maior número de famílias e, consequentemente, ajudar o máximo de crianças possível.

F.Q. - De acordo com o que falámos anteriormente do ponto de vista científico, o Centro ABCReal pretende formar um novo departamento que vise principalmente o enfoque da área científica. Ambicionamos com este departamento estabelecer parcerias de estágio, assim como a apresentação de palestras com diferentes instituições de ensino superior e, sobretudo, a implementação de projetos de investigação (para serem publicados) a fim de consolidar e inovar o conhecimento existente quer na terapia ABA quer no Autismo. Quem sabe, um dia, o Centro ABCReal venha também a ser reconhecido nesse meio (académico)…

C.F. - Não é só o meio académico que deveria reconhecer o Centro ABCReal ou a ABA. Era muito importante que o Estado reconhecesse esta terapia. Procuramos lutar também neste sentido. É importante que o Estado reconheça a ABA enquanto terapia para que possa ser financiado e subsidiado, especialmente para aqueles que não têm acesso de outra maneira. Gostava muito de conseguir ampliar a nossa escala. Por exemplo, dobrar o número de crianças a cada cinco anos. Gostávamos muito de ajudar o máximo de pessoas possível. A ABA não deveria ser uma terapia para alguns. Não deveria ser uma terapia só para o meu filho. Por isso é que abrimos o Centro, para chegar ao máximo de crianças possível e ajudar o maior número de famílias.

Por: Filipe Vilhena 
Imagens cedidas por ABCReal | D.R.

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