"Força de Expressão" #28- Deixem-na ter morrido! [especial]
O dia de ontem ficou marcado pela perda de uma rapariga de 21 anos. Uma das muitas que, certamente, morreu ontem, na flor da idade. Com tantos sonhos e expectativas da vida. Com direito a chegar a velha, a ter rugas, a ter dores nas costas e cabelos brancos. É quase injusto que pessoas jovens morram. Alguém deveria ser punido, não sei se a natureza, se uma entidade superior. Mas alguém deveria responder ao "porquê?" que tantos fazem. Temos de morrer, sim, mas era preciso ser aos 21 anos? Aos 25? Aos 5 anos? Ou até com apenas 1 ano de vida?
Essa rapariga que morreu tinha pais e tinha irmãos. Ela foi "só mais uma" a morrer. A morte dela é tão chocante quanto a de outros jovens na mesma situação. Muita gente se perguntou porque quando morre outro jovem ninguém diz nada, ninguém tem pena, ninguém partilha quando morrem bombeiros a salvar vidas. Eu respondo. Essa jovem tinha um rosto. Era conhecida de todos. É diferente ler nas notícias: "Morreu uma jovem de 21 anos" e "Morreu X aos 21 anos". O "X" é um nome. Um rosto. Automaticamente pensamos na família e isso tem mais impacto. A morte dela não é mais do que a dos outros, não. Mas a morte dela tem um rosto conhecido de todos. A morte dos outros jovens não. O sentimento de injustiça em todos é igual, mas a diferença é ser ou não figura publica.
Ela morreu de acidente. Acidente remete para carro. Carro lembra velocidade. Já foi dito que "só" morreu porque ia a uma velocidade exagerada. Podia ir, poderia não ir. Publicamente nada foi confirmado. E se for confirmado, está a sociedade a julgar alguém que comete um erro? Quando passamos alguém na fila do pão, merecemos morrer? Quando mentimos, merecemos morrer? O namorado ia com ela. Já o julgaram. Disseram que a culpa foi em parte dele. Já pensaram que ele está numa cama de hospital, a lidar com dores e culpa ao mesmo tempo? Que ele perdeu a namorada?
Quando a notícia foi para o ar, um conhecido canal de televisão referiu que "sabemos quem foi a pessoa que morreu, mas não vamos revelar a identidade para respeitar a família, que pode ainda não saber". Onde ficou o respeito depois, quando o nome foi revelado? Horas de direto, imagens a passar em repetição, comentários ao vivo, por telefone, por vídeochamada e só faltou haver alguém a comentar a morte da jovem por carta. Já percebem porque a morte dela acaba por ser diferente da de outros jovens? Se fosse um anónimo não acontecia. Mas os pais continuam a ser tão humanos quanto os outros. Os irmãos também. O que se ganha no meio disto? Audiências. A liderança absoluta. A dor, a tragédia, a especulação e o sensacionalismo vendem. Se vendem, são comprados. Quem compra? Nós. Como? Acusando alguém porque morreu e acusando alguém porque estava a conduzir um carro. Dizendo que ela não era mais importante que outro.
Hoje é um dia triste. Ontem também foi. Reflete-se a vida e a importância desta e a nossa fragilidade. 2020 é um ano negro para quase todos. Pandemia, perdas familiares, desemprego, crise económica, restrições. Imaginem no meio disto tudo perder um filho ou uma filha.
Mas não, a morte dela não é mais importante. Deixem-na ter morrido. Já todos o noticiaram. Já todos o lamentaram. Agora deixem-na ter morrido.
Para quem não entendeu, quem morreu foi a Sara Carreira, filha de Tony Carreira. Porque não o disse acima? Porque não quero que este texto tenha muitas visualizações porque coloquei no titulo o apelido "Carreira". Ele vende muito! Quero que este texto seja aberto por curiosidade e pela mensagem que transmite.
Agora, mais uma vez peço: Deixem-na ter morrido.
Por: Filipe Vilhena
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