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"Força de Expressão" #6 | A cor da palavra, o género do olhar


“Todos diferentes, todos iguais”. Esta é uma frase que muitos conhecem, mas poucos entendem e tentam realmente seguir. Celebrámos a igualdade no 25 de abril e agora, mais do nunca, deveríamos celebrar a desigualdade. A desigualdade que caracteriza cada um de nós.

Foram 41 anos de ditadura portuguesa em que o povo vivia debaixo das ideias e ideais do homem que defendia o lema “Deus, Pátria, Família”. Já devem ter percebido que falo de Salazar, até porque, este é um pedaço amachucado da nossa história, que ainda faz doer. Durante décadas o povo viveu com medo da palavra e do olhar.

Foi no 25 de abril que chegou a liberdade. Falou-se em igualdade de direitos, de género e mais recentemente em globalização. Hoje temos o dom da palavra e do olhar, estamos ligados e conhecemos várias línguas e países. Lutamos contra o racismo, a xenofobia, o direitos das mulheres e da sexualidade. Contudo, esquecemo-nos, por vezes, do poder da palavra e do olhar.

Os nossos poderes são ainda utilizados de forma pouco correta, ainda que por vezes nem nos apercebamos. E é importante perceber isto. A palavra e o olhar são armas que ferem outras pessoas. Temos que ser cautelosos e tentar perceber situações pouco decifráveis à primeira vista onde isso aconteça, para que gerações futuras não repetiam os nossos erros.

Por exemplo, já pensaram na crueldade de dizer “estás na minha lista negra”, “a dar com pau” ou “denegrir?” São três expressões racistas. A primeira associa a cor negra a algo mau; a segunda têm origem nos navios com escravos, onde estes preferiam morrer com pancadas do que serem escravizados; a última origina-se da expressão «tornar negro» e é usada quando alguém suja a nossa imagem e assim nos insulta. E quando dizemos “que coisa gay”, se algo é colorido, brilhante ou apelar para a sensibilidade? Estamos a admitir que os homossexuais são exuberantes, dão nas vistas e são sensíveis. Poderíamos continuar com inúmeras expressões, frases e conceitos que usamos todos os dias mas que são, na verdade, fruto do nosso passado altamente seletivo em padrões.

E no Natal, o que oferecemos à Joana? Uma boneca. E ao Tiago? Um carro. Já pensaram se vissem a Joana a brincar na areia com um carro e o Tiago a fazer penteados a uma boneca? Era uma visão desconfortável, certamente. Iríamos questionar-nos daquelas escolhas e até perguntar porque o estão a fazer. Agora imaginemos que estamos num café e na mesa da frente está uma pessoa com síndrome de down. Obviamente vamos “olhar-julgar”. Mas será que a presença de mais um cromossoma no ADN de uma pessoa é motivo para a fazer sentir desconfortável? Não lidamos bem com o que é diferente. E por falar nisso, já viram que a vencedora do “Festival da Canção” tem o cabelo cor de rosa?

Temos aqui várias provas de que o racismo, a xenofobia, a homofobia e a exclusão social não estão presentes apenas em ofensas ou atos diretos. Frases que achamos simples e olhares providos de julgamento fazem parte do nosso quotidiano e remetem-nos para um mundo antigo, que não deveria existir. Considero que a nossa sociedade realmente esteja a lutar pela desigualdade de cada um. Mas temos que começar por baixo, por abolir situações de julgamento que fazemos quase forma indireta mas que apresentam uma conotação negativa, reles, opressiva, que ofende e mágoa.

Ganhámos a palavra e somos donos do olhar, mas, por vezes, utiliza-mo-los para alimentar maus sentimentos nos outros e em nós mesmos. Porque nos faz mal ser assim também. Quantas vezes não guardamos palavras para nós por medo de sermos rotulados de “malucos”? Ou quantas vezes não deixamos aquela peça de roupa de lado por medo dos olhares? Não podemos continuar assim. Eu quero que o meu filho ou filha cresça num mundo onde o lápis “cor de pele” seja o branco, o preto, o amarelo e o azul e onde brincar não tenha género. Porque com isto, temos bases solidas para um dia celebrar a desigualdade de cada um.

Por: Filipe Vilhena 

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